Há oito anos…

[9 abr 2015 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Se tudo der errado, vou virar um escritor de ficção de gastronomia. O porquê? Em outubro de 2007, fiz um artigo arriscando algumas previsões para o que viria no ano seguinte, de 2008. Era um tempo em que se citavam referências como o cardápio do Carême, aqui, e o El Bulli, lá. Errei um monte, como no caso da “karaya” (sem trocadilhos, por fineza) e de efemérides como o “matiz”, o “morphing”, o “cromatógrafo” – ou de impressões que me pareceram fortes, como a de um certo cogumelo tremella, que nem me lembro mais onde provei.

 

Mas curti uma animadora taxa de acerto, incluindo o caso de alguns itens sobre os quais não se falavam – e que deixaram de ser um mero trend para ganhar a rotina dos bares e restaurantes, como no caso das “verrines” e dos “mixologistas”. Ou passaram a freqüentar as listas de listas de vinhos ou drinques, como o “shot” e o “microclima”. Risível, claro, mas lembro também que riam de quem falasse em “toro” em um restaurante japonês ou um “orgânico”, mesmo no Celeiro. Ou do Languedoc, a quem me referi como “Catalunha francesa”, diante de um carta de vinhos chilenos. Mas vale a piada, que, convenhamos, não é tão vintage assim. Qualquer coisa, viro humorista…

 

 

PARA ENTENDER A GASTRONOMIA DE 2007

 

Se a mesa está na moda, nada mais natural do que a moda estar na mesa. E também nos cardápios, nas cartas de vinhos, nos repertórios de cafés e chocolates e até no diálogo entre chefs e seus cozinheiros. São as novas expressões da gastronomia contemporânea, que descrevem as novas fórmulas, técnicas e tendências da cozinha internacional. Boa parte deles saiu da ementa de mestres já consagrados, como o molecular Hervé This, o nitrogênico Heston Blumenthal e o polêmico mas sempre brilhante Ferran Adrià. Uma seleção desse novo vocabulário, a Caffè traz aos seus leitores, em primeira mão. Leia, guarde e confira.

 

Ar de cenoura com leite amargo de coco. De Ferran Adrià, claro (Foto: FRancesc Guillaumet)

Ar de cenoura com leite amargo de coco. De Ferran Adrià, claro (Foto: FRancesc Guillaumet)

Ar

Preparado de leveza etérea, é uma variedade de espuma que, de tão fina, pode ceder a um sopro ou até a um olhar mais severo. É resultado de uma essência de aromas combinada com lecitina de soja, que garante a frágil estabilidade do preparado.

 

Azeites essenciais

Diz-se dos azeites aromatizados com extratos de ingredientes como ervas (alecrim, hortelã, lavanda), frutas vermelhas, especiarias (açafrão, cravo, zimbro, baunilha) ou ainda as essências mais procuradas, como as de trufas. Sua aplicação ganha destaques especiais nos cardápios e vem ganhando destaque nas linhas mais exclusivas dos azeites de grife.

 

Azeites aromatizados por Ferran Adrià para a Borges

Cacau

Uma das estrelas das novas tendências, regidas por duas de suas aplicações: o chocolate, que passa a ganhar grãos de origens premiadas e concentrações acima de 70% de amargor. Em Londres, é comum os cardápios apresentarem seus chocolates pela concentração. A outra é o uso da polpa fresca do fruto no preparo de cremes, purês e sorvetes, que têm paladar similar ao do cupuaçu, parente direto do cacau.

 

Chantilly

Para os antigos, um creme batido, com ou sem açúcar, que acompanhava o morango. Hoje, um creme similar, mas preparado com qualquer ingrediente – do café à batata – que proporcione a forma de uma pomada lisa e de textura fluida. Tornou-se uma sofisticada opção aos purês.

 

Contraste

Diz-se de qualquer tempero ou preparado que dará o choque de paladar característico de um encontro entre o agre e o doce, o frio e o quente, o yin e o yang. É o caso do travo da canela no serviço das ostras frescas, sugeridas pelo chef Checho Gonzalez.

 

Cromatógrafo

Instrumento consagrado pelos astrônomos para identificar a composição de astros, meteoros e outros corpos celestes. A cozinha contemporânea aplicou o aparato para analisar alimentos para controles de qualidade e precisão de molhos e reduções. E ainda para a análise sensorial de vinhos.

 

Emulsão

É a combinação de dois fluidos que não se dissolvem, mas se agregam quando submetidos a agito violento. É o caso dos aïolis e das maioneses, cujas variações ganham, no cardápio, essa denominação mais rebuscada.


Mix de cogumelos com chantilly de trufas, do antigo Mok Sakebar (FOTO Marco Hovnanian)

Garum

Molho salgado de peixes fermentados ao sol, que os romanos usaram largamente em sua culinária. Esquecido por quase um milênio, está de volta como uma variação de molhos asiáticos como o nam pla e o nuoc nam.

 

Kappa

Variedade de goma extraída de algas, usada na composição de formas estáveis de soluções fluidas ou líquidas.

 

Karaya

Goma extraída da seiva da árvore Sterculia urens, usado como estabilizantes nas finíssimas espumas de aromas.

 

Languedoc

Intensos, capitosos, saborosos, são os vinhos do sul da França, mais exatamente da região do Languedoc-Roussillon, considerada a Catalunha francesa. Ideais para o verão brasileiro.


Languedoc, que ainda via como a Catalunha frarncesa: Comtes de Lorgeril Cabernet Sauvignon (FOTO Pedro Mello e Souza)

Lecitina

Subtância presente na soja e obtida pelo refinamento do óleo da semente. É usado em uma das mais modernas das criações de Ferran Adrià, o “ar” de aromas, um preparado ainda mais fino do que a espuma.

 

Matiz

Expressão que complementa a descrição de molhos, coulis ou reduções em que certos ingredientes usados revelam seu travo e seu paladar com um nível ligeiramente superior ao dos demais.

 

Microclima

Expressão que vem ganhando as cartas de café e de chocolates. Refere-se aos grãos cultivados e colhidos dentro de ambientes e situações específicas – de uma encosta especíal de um cafezal ou cacaueiro à vertente em que se expõe ao vento e ao sol. O resultado é um produto de características fortes e marcantes, que, aliado à produção pontual, ganha grande valorização do mercado e, claro, no preço final.

 

Mixologia

Nova denominação para a antiga ciência do barman e de seu repertório de misturas (ou mix) e criações. Os novos profissionais, desde já conhecidos como mixologists, encaram uma formação que inclui as gamas de paladar e as reações moleculares entre os ingredientes, na busca da harmonia perfeita.

 

Morphing: a técnica das esferas de Ferran Adrià (Foto de Francesc Guillaumet)

Morphing

Dos efeitos de editores de imagens para a mesa, é uma fórmula de preparo de ingredientes que confere ao produto final um formato inteiramente diferente daqueles aos quais o ingrediente original se presta. É o caso da ervilha, que Ferran Adrià transformou em uma esfera de forma idêntica à da gema de um ovo pochê.

 

Nuvem

O futuro do já manjadíssimo petit-gâteau. É uma estrutura aerada, sustentada por um gelificante, como a metilcelulose. Permite que o seu interior guarde as caldas, sumos ou geléias que dão a graça ao prato, escorrendo, untuosa, após o corte.

 

Orgânicos

Expressão que ganha lentamente os cardápios brasileiros, no rastro não da pureza, mas dos preparados europeus, que só lidam com produtos orgânicos. Aqui, ainda está por conta da curiosidade, como a de um índio que se diverte com o espelho do conquistador.

 

Peixe-prego

Pescada assim denominada pela carne untuosa de especial brilho na constelação dos sushis. Isso, graças à gordura natural, que lhe confere um paladar untuoso e aveludado. No mercado internacional, é conhecido como butterfish e ganha essa denominação pelo óleo que solta na frigideira, dispensando a manteiga ou qualquer outro ácido graxo.

 

Reação de Maillard

Uma das reações químicas mais estudadas da gastronomia contemporânea. Fundamentos para o bom grelhado, é o comportamento entre ácidos e aminoácidos das carnes, que “suam” da carne sobre a chapa quente, solidificam-se e permitem que a superfície fique “selada” e a peça não perca sua suculência.

 

Sifão

Instrumento de bar que se encontrava em desuso e era usado no serviço de águas como a seltzer. Hoje, é usada no serviço de purês finíssimos (ver NUVEM) que ganham uma injeção de ar durante a descarga no prato. É o caso do chef Rolland Vuillard, do Le Pré Catelan, que serve seu purê de batata baroa defumada de sifão.

 

Turbot aux morilles, do Benoit, de Alain Ducasse (Foto Pedro Mello e Souza)

Shot

Literalmente, tiro. Nos bares, refere-se aos copos curtos, que se toma de um trago. Na cozinha atual, acompanha pratos principais e tornou-se uma forma original de se degustar um molho ou um contraste. Em sua releitura da moqueca, a chef Flávia Quaresma apresenta os ingredientes separados, com o molho de dendê servido em shot.

 

Suspensão

Espetacular efeito decorativo, que consiste em tratar pedaços pequenos de ingredientes com goma xantana, permitindo que fiquem em suspensão em um líquido.

 

Toro

É a barriga do atum. No Japão, é a fatia mais cara do atum, graças ao seu alto teor de gordura, que transmite textura e paladar inigualáveis ao corte do sushi. Aqui, é desprezada e, muitas vezes, seu destino é o lixo.

 

Tremella

Certa variedade de cogumelo frisadinho como uma renda, mas de consistência levemente gelatinosa.

 

Turbot

Prezadíssima variedade de linguado das águas do Mar do Norte, famoso pela sua carne branca, macia e suculenta, que se desfaz na boca e transmite um paladar próprio, sem os excessos do iodo do mar. É um peixe à parte, que os chilenos tiveram a felicidade de trazer para suas fazendas marinhas da Patagônia e torna-lo acessível aos paladares exigentes do Cone Sul.

 

Verrine

Combinação de verre, (francês para copo) com terrine. Na concepção atual, as camadas típicas das terrines são o tema dessa pequena dose de degustação, que harmoniza ingredientes e suas cores, valorizadas pela transparência de um copinho decorativo. Já está por aí há algum tempo, mas explodiu com os recentes cardápios do Atelier de Joel Robuchon.

 

Verrines de legumes da antiga Expand, em Ipanema (Foto de Rodrigo Carro)

 


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *