Duelo de tutanos

[10 fev 2015 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Seria o tutano o novo foie gras? Vamos às comparações: ambos são delicados, ambos derretem na boca, ambos nos deixam gemendo, ambos exigem extrema unção no preparo, ambos são gordura pura  nos teores, nos sabores intensos e na persistência adorável. A grande diferença é que qualquer açougue brasileiro consegue a preço irrisório aquilo que chefs como Heston Blumenthal já cobram com o número impublicável de algarismos do próprio foie gras. No Rio ou em São Paulo, alguns até dão de graça.

 

Nesses açougues, tutano é também o osso cortado, já próprio para ir ao forno ou à mesa. Nessa mesa, é a iguaria assada e servida como um elemento para molhos – melhor ainda quando não é desfeito – ou no próprio osso, que é cortado como um copinho, como no caso do ossobucco e do stinco, em que são sugados, como manda a tradição, ou extraídas com uma espátula própria, como recomenda a etiqueta.

 

Caldo clarificado com tutano na torrada de foccaccia, criação de Cris Beltrão, que, meses antes… (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

… já tinha registrado a iguaria sob uma lâmina de pão-de-ló, por sugestão do medalhadíssimo Carlo Cracco, em Milão…  (Foto: Cristiana Beltrao)

Mas a peça pode ainda ser cortada ao longo, de forma a expor o miolo para combinações mais delicadas com temperos e pequenas guarnições. Ou, simplesmente, para um degustar mais simples. Foi o que fez Heston Blumenthal, no seu Dinner. É o que faz o Le Jazz, em Pinheiros. É o que fez Matthew Lightner, no espetacular Atera, no Tribeca.

 

Mas há tutano também na carne interna dos ossos superiores das pernas e da coluna do boi. Em termos médicos, é a medula. Na cozinha, o tutano vermelho, tradução direta do red marrow, que os britânticos já preparam nas cozinhas mais refinadas há séculos. Recentemente foi alçado ao estrelato por uma série de chefs ingleses, no caminho do resgate de uma cozinha ancestral, de proveito total. O ponto em que ainda fica firme é fundamental para o tutano. Cheque isso nas torradas de entrada do Tuju, em São Paulo. Ou na foccaccia que guanrece o caldo clarificado do Bazzar, algo que a criadora da iguaria, Cris Beltrão, já tinha visto no Cracco, em Milão.

 

… e ambos inspiraram um dos poucos acertos do Tuju, em São Paulo: o canapé de tutano com beldroegas (Foto: Pedro Mello e Souza)

Mas a relação do tutano com o próprio corte nobre de uma carne tem o seu encanto: leva untuosidade necessária ao hambúrguer do Z-Deli, em Pinheiros, São Paulo. É abundante, parece grelhada junto com o bifão e se espalha entre os pães, mas com uma consistância particular, que não permite que se desfaça, como em guarnições de sanduíches ordinários.

 

É mais ou menos o que se vê nos filés imensos, grossos, de carne de veado (venison) do melhor restaurante de Londres, The Ledbury. O tutano é o do branco e chega em medalhões que fariam qualquer vieira corar por aqui. Se a carne da caça é magra, o prato é, digamos, generoso e sorridente. Até entre os frutos dos mares, a magia dá certo. Para conferir: dê uma olhada no atum de Pedro Artagão, em que substitui o já manjado foie gras por um medalhão de tutano.

 

Cheeseburguer com tutano do Z-Deli: abundância vulcânica (Foto: Pedro Mello e Souza)

Veado com medalhões de tutano, em um dos pratos que transformaram The Ledbury no melhor restaurante de Londres (Foto: Pedro Mello e Souza)

Ou cheque o novo caminho para as vieiras, inspiração de Rafa Costa e Silva, no Lasai, em Botafogo. Nenhuma surpresa, no entanto, para quem já conhece o clássico do Marea, em Nova York, que combina a massa com polvo e o bone marrow. A colher, para raspar no fim, já chega sem que o cliente precise pedir. Se o tutano leva textura a massas, levará também aos risotos, como o que Yoji Tokuyoshi, então sous-chef do Osteria Francescana, apresentou em evento no Pobre Juan.

 

Nos cardápios mais tradicionais, será encontrado em molhos, no grand finale do milanês ossobucco e em especialidades de pubs londrinos (‘marrow bone’) ou dos bistrôs franceses (‘os à la moelle’). Muito apreciada pelos portugueses, o tutano é um dos ingredientes citados no Livro de Cozinha da Infanta d. Maria, do seculo 15, como recheio de pastéis, ou seja de empadas e empadões. Antigo? Nem tanto. Em seu livro Food in History, a historiadora Reay Tannahill á descreve sítios astrológicos com indícios de ossos quebrados para a coleta do tutano. Ou seja, na área do sabor, o homo já nasceu habilis.

 

Marea, em Nova York: fusilli de polvo com tutano (Foto: Pedro Mello e Souza)

No Pobre Juan, o risoto de Yoji Tokuyoshi, da Osteria Francescana, com verduras mare i monti, alga e, claro, tutano (Foto: Pedro Mello e Souza)

Preparo de tutano na brasa, em foto tungada do instagram de Alexandre Bronzatto

Tutano no osso de palmito, no conceito de Matthew Lightner, do Atera, em Nova York         (Foto: Pedro Mello e Souza)

Tutano assado no Le Jazz, em Pinheiros (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

 

 

 

 


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