Por dentro da C.I.A.

[6 dez 2014 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

MATÉRIA PUBLICADA NO CADERNO ELA GOURMET,

NA EDIÇÃO DE 6 DE DEZEMBRO DE 2014, DE O GLOBO,

 

Por dentro do CIA, no Caderno ELA Gourmet de dezembro de 2014

Há pouco mais de dez anos, quando realmente decidiu-se pela cozinha, mantendo a linhagem de sua família, Thomas Troisgros buscou informações sobre cursos na França, berço reconhecido da alta gastronomia, ou na Suíça, referência em hotelaria. Na dúvida, foi direto ao assunto e consultou Joel Robuchon, amigo de seu pai, Claude, sobre onde se inscrever. O velho chef não teve dúvidas: indicou o Culinary Institute of America e tratou pessoalmente de um dos fundamentos para entrar na escola, uma carta de recomendação. Na época, o estágio que cumpria no restaurante do seu pai em Nova York, selou o destino do jovem Troisgros.

 

O brasão da entrada pela qual cruzaram alguns dos melhores chefs do mundo - alguns brasileiros, inclusive (Foto: Pedro Mello e Souza)

Na época, a única referência do chamado C.I.A no Brasil era a agência de inteligência do Pentágono. E poucos associavam a uma instituição centenária – a primeira turma é de 1888 -, que acabaria formando chefs medalhados, hoje míticos, como Anthony Bourdain e daquele que é tido como um dos maiores cozinheiros de Chicago, Grant Achatz, do Alínea, considerado, hoje, como um dos dez melhores restaurantes do mundo.


Foi a escolha certa, lembra Thomás, que destaca na escola americana aquilo que as outras não tinham, uma diversidade de culturas na gastronomia muito maior do que as referências francesas, que, praticamente, focavam seus currículos na culinária do país. “Tínhamos professores de todos os países do mundo, o que abre aos alunos um campo bem amplo de aprendizado sobre outras culturas, especialmente as da carne”, conta.


Confeitaria da aula do café eda manhã (Foto: Pedro Mello e Souza)

Em pleno coração de Napa Valley, o velho château abriga a venerável escola (Foto: Pedro Mello e Souza)

Na sala de Thomas, um outro nome conhecido entre nós, o de Rafa Costa e Silva, que brilha, hoje, com seu Lasai, em Botafogo. Ele foi outro a se surpreender com a sugestão de uma escola fora da Europa, especialmente em um país que não tinha uma gastronomia tão reconhecida no Brasil. E lá foram eles para o curso de dois anos, no campus da Coste Leste, localizado em Hyde Park, a uma hora e meia de carro de Nova York.

 

Anos antes, outro nome bem conhecido dos brasileiros já tinha cumprido sua trajetória na instituição: Felipe Bronze. “É um curso extremamente rigoroso, para quem quer mesmo fazer a sua vida nas cozinhas”, explica ele, que chegou ao curso quase por acaso, quando recebeu de Bel Coelho, hoje chef e consultora, um formulário para inscrição. Preencheu e deu no que deu: hoje, é um dos chefs mais premiados do hemisfério.


Aplicação nas aulas práticas (Foto: PMS)

Loja do CIA: irresistível para amandores e profissionais (Foto: Pedro Mello e Souza)

Todo esse rigor do Culinary Institute of America rende bons alunos, mas também uma grande cota de desistências. “Dos mais de 40 alunos da minha primeira turma, somente 13 se formaram comigo”, lembra Thomas Troisgros. As exigências iam desde a intolerância com faltas e atrasos – não mais do que dois por ano – até a fiscalização de todos os detalhes de aparências, da barba aos sapatos, da limpeza das jaquetas à perfeição dos toques e até dos nós nos lenços.

 

Rafael Costa e Silva lembra-se bem das passagens dos chefs pela turma, desde as primeiras horas da manhã: “parecia uma vistoria militar, com os alunos perfilados como um batalhão de soldados diante de um oficial do exército”, diverte-se. “Queriam quebrar um pouco a imagem meio marginal dos chefs modernos e mal toleravam qualquer coisa que comprometesse o asseio, como barbas e tatuagens”, completa, confirmando o que já dizia o crítico americano Craig Clairborne: “O C.I.A. está para a culinária como o curso Julliard está para a música, mas também como West Point está para o exército”.

 

Hall de entrada em estilo medieval - e as bandeiras da diversidade dos alunos (Foto Pedro Mello e Souza)

Mas o esforço foi recompensado e, antes de partir para sua carreira na Espanha e sonhar com seu restaurante no Rio, Rafa foi convidado para assumir o restaurante de um dos quatro campus do C.I.A., o de San Antonio, no Texas. Hoje, o mais badalado – e mais acessível – para os brasileiros é a sede da instituição, em Nova York. Mas há quem sonhe em cumprir o seu curso na venerável sede de Santa Helena, na Califórnia, em pleno coração do Napa Valley, ponto de peregrinação da moda, na área dos pratos e dos copos.

 

É um château que abrigou uma vinícola até os anos 80 e que, por trás de seus muros cobertos de heras, exibe uma estrutura espetacular de salas de aulas e auditórios, cozinhas de se perder de vista, restaurantes em que os próprios alunos cozinham, lojas de equipamentos. Em todos eles, algo a aprender, em uma rotina que podia começar de madrugada, como lembra Felipe Bronze: “Quando tínhamos aulas de café da manhã, estávamos a postos às duas horas da manhã, preparados e atentos às aulas teóricas e, depois, às práticas, não importa o quanto se trabalhou no dia anterior”, conta o chef, que passou por essas agruras ao lado de Daniel Giust, hoje o braço direito de Rané Redzepi, no Noma, em Copenhaguem, bicampeão entre os eleitores do 50 Best Restaurants of the World.

 

Aulas rápidas aos visitantes (Foto: Pedro Mello e Souza)

Se tivessem estudado na California, tanto Felipe quanto Rafa e Thomas teriam enfrentado um desafio mais familiar mas não menos rigoroso, a do chef Almir da Fonseca, o único professor brasileiro do C.I.A. Ele foi chef em São Francisco nos anos 80 e professor do Instituto de Culinária da Califórnia. Com esse currículo e mais um prêmio como melhor chef da região da vizinha Sonoma, em 1991, ele foi chamado para dar aulas no CIA logo na virada do século, comandando uma dezena de matérias, entre elas Cozinha Mediterrânea, Desenvolvimento de Menus, Cortes de Carnes e Peixes. “Recebemos alunos de todo o mundo e, além das recomendações e das experiências de seis meses em restaurantes, exigimos muito inglês e matemática”, explica Almir. Felipe Bronze se lembra bem dessa exigência: “Na época, não falava inglês como hoje, o que complicava muito nas aulas técnicas, como as de cortes industriais de carnes, que são muito diferentes das que temos aqui”.

 

“Food is Life – Create and savor yours” é a assinatura do Culinary Institute of America. E um indicador de como a instituição quer libertar o aluno após dois anos de aprendizado – e mais dois, se ele quiser atingir o nível Bachelor, de administração avançada. Os investimentos não são modestos. No nível básico, cada aluno tem de desembolsar algo entre 50 e 70 mil dólares, incluindo o curso, a moradia, os uniformes, os livros e os equipamentos. E podem incluir alguns cursos de extensão, como fez Thomas Troisgros, que incluiu em seu currículo matérias como Gastronomia no Cinema e na Literatura. E outros como o de Food Design, com técnicas de apresentação de pratos e até iluminação para fotografia, como as que Felipe Bronze trouxe com ele, mostrando que, na cozinha, O C.I.A. é a mais saborosa das centrais de inteligências americanas.

 

 


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