Calaram o Bocca

[8 set 2012 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Bocca: Sardinha com salada algarvia (Foto: PMS)

Falávamos de sardinhas. O peixe veio cru, enroladinho e guarnecido com uma salada alentejana feita em gaspacho e com um dos elementos da moda, em Lisboa: o carvão de choco – ou a lula crocante na própria tinta, obra de uma das estrelas da estação, o chef Alexandre Silva. Em placa de ardósia, uma saladinha de frutas vermelhas com espuma de bacalhau, brotos de shiso e uma alga chamada salicórnia. O tartare de carne barrosã, sempre ela, veio com gotas de gemas em gel, preparadas a 60 graus, folhas de arroz e um sorbet de hortelã. Touriga e alfrocheiro, um mix de castas tintas do norte e do sul nesse rosé do Dão. Para os enólogos, mais um remix, no Senhor d’Aldraga 2009 (alvarinho, arinto, chardonnay e riesling, oh, Jesus!) para acompanhar o pregado, uma versão do linguado imensa no tamanho e no paladar. O mais fino vem de onde menos se espera: o cachaço de porco, que se derretia na boca. Sem trocadilho, esse era o Bocca.

 

Tartare de carne barrosã, gotas de gel de gemas e sorbet de hortelã

Expliico o título, a nostalgia e, menos perceptível, minha irritação . Quando fiz a matéria Lisboa Remix, para o caderno ELA Gourmet, do Globo, sobre a nova onda dos restaurantes portugueses, cansaram de me perguntar qual, afinal, teria sido o meu favorito. Não soube responder. Cada um tinha uma via diferente, uma linha de criatividade sobre as tradições, de raciocínio sobre as receitas, de observação sobre os ingredientes. Complicado mesmo.

 

Talvez fosse mais fácil perguntar qual deles faria mais falta. E a força do golpe no fígado me ajudaria a decidir, de forma amarga, de confissão torturada e com impacto emocional, o mesmo que levei quando soube, pelo cineasta e produtor português Ivan Mendes, que o Bocca tinha fechado.

 

Pregado, que conhecemos como turbot, o rei dos linguados (Foto: PMS)

Corri no site deles e lá estava o post derradeiro, no string de últimas notícias: “O Bocca encerra hoje as suas portas ao público, após 4 anos de sucessos e conquistas”. Ivan já me explicara, o texto que segue o link do restaurante me esclarecera: não resistiram ao aumento de 13% para 23% do IVA, o imposto sobre serviços comum aos países da União Europeia – e um pesadelo dos restauradores e suas margens pequenas, já esmagadas por aumentos nos recolhimentos sociais e a subida de tarifas para serviços fundamentais como a de luz.

 

O protesto do proprietário do Bocca, Pedro Aragão Freitas indica que outros caminhos poderiam ter sido escolhidos. Para ele, uma das saídas seria uma maior e mais eficiente fiscalização para gerar o aumento de arrecadação. “O governo poderia ter seguido essa opção. Não o fez. Optou por punir primeiro os cumpridores. O Bocca sempre foi um desses raros. Provavelmente terá sido erro meu…”, diz Pedro, ressentido.

 

Cachaço de porco: intensidade inesquecível (Foto: Pedro Mello e Souza)

Mas a grita não é só dele. Muitos apelam para empréstimos – muitos deles particulares – para salvar o patrimônio. Protestos movimentaram Lisboa, as associações de classe representaram, mas nada demoveu o governo de rever a medida. Em tempo: o IVA de 23% sobre o faturamento de restaurantes em Portugal tornou-se o maior de todos: na Irlanda, é de 9%. Na França, de 8%. Na Espanha, rival maior da indústria turística de Portugal, de módicos 8%.

 

Muitos restaurantes já fecharam, avisou-me Ivan, que avisou que a coisa não vai parar por aí. Com a palavra, o Governo de Portugal e a Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), que já estimava, no fim de 2011, que mais de 50 mil pessoas estariam desempregadas.

 

Salada de brotos, morango e espuminha de bacalhau (Foto: PMS)

Viajei sozinho, almocei sozinho. Entre as fotos, que deixavam a equipe impaciente, e as garfadas, pensava nos amigos. Em cada paladar, em cada apresentação, em cada pequeno cuidado, no ritmo pensado de cada prato, nos vinhos escolhidos, todos adoráveis, frescos e leves, como vinha e convinha cada prato. Tinha que mostrar aquilo, documentar. Contar não bastaria. Até o sol frio de novembro ajudou naquela tarde. A cumplicidade vinha nos vizinhos de mesas esparsas – era tarde. Eram dois segundos de olhar que ia e voltava no abanar anuente e sorridente de cabeça.  Todos me seguiam? Eu seguia a todos. Estava muito bom. Me estarreceu não ver o Bocca na lista da Restaurant, para tentar, mais uma vez, ver algum sentido naquela lista. Mas não, o Bocca não estava. O Robuchon estava. Essa é a minha irritação.

 

 


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