O crítico pós-Katrina

[17 dez 2012 | Pedro Mello e Souza | Um comentário ]

(Editei essa matéria há dois anos. Ainda no Globo, hoje na VejaRio, o jornalista Rafael Teixeira, tinha um blog de gastronomia, apesar pela sua preferência profissional pela área cultural, especialmente pela música, que o fez assinar, durante uma boa época, uma série de críticas e resenhas para a Rolling Stone. E pelo teatro e as artes plásticas, que o envolveram de vez. E ele deixou o blog à míngua. Não deveria. A prova está na a leveza, no ritmo e na qualidade da informação desse texto abaixo)


Foie gras do LaBra, no bairro do mesmo nome, um dos mais atingidos pelo Katrina

 

APÓS O VENDAVAL

Entrevista com o crítico Brett Anderson

A culinária de New Orleans antes e depois da devastação do Katrina, sob a ótica do crítico de gastronomia mais importante da cidade

 

Por Rafael Teixeira

 

O gumbo do Galatoire

Em agosto de 2005, quando o furacão Katrina passou por Nova Orleans, a ventania arrancou uma parte do telhado da casa do jornalista Brett Anderson. Deu sorte. O bairro onde ele vivia ficava entre os 20% da região que não foram inundados quando os diques que protegiam a cidade romperam. Apesar disso, Anderson precisou evacuar, refugiando-se no estado vizinho do Mississippi. Retornou à Louisiana sete dias depois, para se dar conta de que, se o Katrina fora benevolente com sua residência, abalara seriamente seu ganha-pão como crítico de gastronomia do The Times-Picayune, o maior jornal da cidade.

 

“Escrever resenhas era uma rotina que tive que deixar”, lembra Anderson. O Katrina deixou um saldo de mais de 1.500 mortos em Nova Orleans. Centenas de milhares perderam suas casas ou ficaram temporariamente desabrigados. Obviamente, restaurantes fecharam – esvaziando um dos símbolos locais, que é a sua culinária típica. De fato, em se tratando de Nova Orleans, só o jazz tem mais força como representação cultural da cidade do que sua gastronomia de base cajun e creole, com influências da Europa, África e Índias Orientais, e receitas que podem levar feijão, frutos do mar, vegetais ou salsicha – às vezes, tudo isso junto.

 

Sem restaurantes, não fazia sentido um crítico. E, mesmo depois que as casas começaram a reabrir, pontificar sobre a textura de um bife soaria como afronta. “Eu me sentia desconfortável com o que a crítica gastronômica implicava: que tudo havia voltado ao normal, quando evidentemente não havia voltado”, recorda. Em um primeiro momento, então, Anderson engajou-se na cobertura da tragédia. O trabalho dele, em conjunto com outros repórteres do Times-Picayune, mereceu dois prêmios Pulitzer.

 

No auge da produção de resenhas pré-Katrina, Anderson comia fora até 12 vezes por semana, e não apenas em estabelecimentos finos. “Eu escrevo até sobre lojas de po’boy”, diz, referindo-se ao sanduíche típico da cidade. Apenas restaurantes propriamente ditos, porém, merecem resenhas, com uma pontuação de zero a cinco – contada não em estrelas, mas em feijões. Uma média de três críticas é publicada por mês. O modus operandi é o mesmo: “Eu visito o restaurante com amigos. Cada um pede algo diferente, o que amplia o número de pratos que vou provar. Só vou a um restaurante pelo menos dois meses depois de inaugurado, e vou no mínimo três vezes antes de escrever”, explica.

 

Salão do restaurante Auguste, um dos preferidos de Brett Anderson

Afora isso, há a questão do anonimato – que sempre se impôs para o Times-Picayune. Os editores não permitiram, por exemplo, que este texto fosse ilustrado com uma foto do crítico. Apenas um mês antes do Katrina, Anderson já enfrentara um desastre que comprometera seu trabalho: o furacão Cindy, que deixou a cidade sem luz por dias. Nada comparável aos problemas que se sucederam ao Katrina, quando os serviços básicos praticamente pararam – o que dizer, então, dos restaurantes? “Fornecimento era um problema óbvio”, lembra. E havia obstáculos em manter uma equipe. “Grande parte da força de trabalho, que tinha saído da cidade, tinha dificuldade para voltar.”

 

Com tantos problemas, Anderson passou a cobrir a tragédia, mas voltou aos restaurantes à medida que outros repórteres retornavam à cidade. “Havia muito a cobrir. A indústria turística é um dos maiores empregadores do estado, e Nova Orleans deve muito de sua identidade à gastronomia. Chefs e restaurateurs tiveram um papel fundamental na reconstrução da cidade. Minhas memórias mais emocionantes são de quando os primeiros restaurantes reabriram. As pessoas entravam e seus olhos marejavam ao verem seus vizinhos, boa comida, coisas que não foram destruídas.”

 

Herbsaint: rémoulade de camarões

 

Assim, pouco a pouco, a cena gastronômica de Nova Orleans foi se reencontrando. Segundo Anderson, o negócio retomou o ritmo pré-Katrina dois anos após o furacão. Mas ele esperou mais um ano até retomar a crítica – o que ocorreu em 2008, quando ele deu três feijões ao Mr. B’s Bistrô, uma das muitas casas que precisaram ser reconstruídas.

 

Alguns estabelecimentos, porém, nunca mais reabriram – uma minoria. “O número de grandes novos restaurantes supera em muito o dos que fecharam. Nova Orleans é um lugar melhor para comer hoje do que há cinco anos”, diz Anderson. Atualmente, seus preferidos são o infalível Galatoire’s – fundado em 1905, ainda hoje servindo culinária creole – o Herbsaint – onde o chef Donald Link faz uma cozinha francesa com influência do Sul dos EUA –, o francês contemporâneo August – comandado pelo excelente John Besh – e o Gautreau’s – com a jovem Sue Zemanick à frente, ligando tradição e modernidade.

 

Até recentemente, Brett Anderson dividia seu tempo entre a gastronomia e a cobertura de outro desastre: o vazamento de óleo no Golfo do México, que atingiu a costa da Louisiana. “Há dificuldades de fornecimento de frutos do mar. Ostras têm sido o maior problema, mas o preço dos camarões também aumentou”, diz Anderson. Como aconteceu antes, porém, a gastronomia de Nova Orelans reencontrará seu rumo. E Brett Anderson estará lá, distribuindo seus feijões.

 

 


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Depoimentos

  1. roger disse:

    enteressante, bacana. ABS.