O mais triste dos sanduíches

[4 ago 2013 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Pão seco, recheio idem, Casa do Alemão (FOTO Pedro Mello e Souza)

Saída do cardiologista com a boa notícia debaixo do braço: depois de tudo o que comi e bebi ao longo desses anos, dieta liberada. Meus crimes compensaram, meus pecados foram relevados, meus excessos não foram computados, meu arquivo foi limpo, meu foie não ficou gras. Mas um pequeno castigo estava à espreita – ninguém mandou comemorar no ato, no primeiro lugar que encontrasse. Casa do Alemão, infância falou alto, mandei vir o chope escuro, que chegou com a espuma balouçante, insinuante, sensual, densa, mas com o paladar apenas superior ao que sai da torneira da minha cozinha.

 

Relevei. A boca cheia era mesmo para o sanduíche de língua defumada que estava no cardápio. Lembrei do similar do Katz Deli e salivei com aquela iguaria quase incomível, inatingível de tanta carne macia, um breve pela desarticulação de qualquer maxilar escondido entre duas fatias indefesas de pão crocante. Quando chegou o meu, travei de suar frio. É isso?, perguntei, perplexo, diante do risquinho vermelho, o pretenso recheio que vinha no meio de uma massa mórbida, que o local insiste ser um pão de leite, diligentemente cortado em dois.

 

– O senhor pediu de língua? Então é isso mesmo, respondeu o atendente, antes de sumir lá pra dentro com a sua elegância moldada nas docas.

 

Sanduíche de pastrami do Katz Deli

Certa vez, o jornalista Paulo Roberto Matta disse que eu era um estóico, que eu me divertia em ir até o fim de situações incorrigíveis só pra ver no que ia dar. Ele deveria estar junto e testemunhar seu diagnóstico, pois, por pura revolta, pedi uma segunda rodada.

 

– Repeteco, mas dessa vez com recheio, deixei claro, com voz entre o sério descontraído e a busca inútil pela migalha de generosidade.

 

– O senhor quer que “esquenta?”, tentou retribuir o rapaz. Cúmplice com a providência e omisso com a gramática, aceitei. Veio idêntico, um pouco mais esmagado e lustrado pela chapa engordurada. O risquinho vermelha continuava delgado. Nem me lembro de quanto paguei, mas foi caro – qualquer preço seria. Se tinha a notícia boa como único tempero para salvar o paladar do momento, saí com a lição de que achar que encontraria um sanduíche de língua farto, generoso, estarrecedor como o de um Katz Deli seria inútil.

 

E também aprendi que mesmo aquele, o mais triste dos sanduíches, satisfaz a exigência displicente do lanche do passante, do comensal do ticket-restaurante, da falta de paladar de um país que estabelece uma regra tácita: por ser barato, será medíocre – e, por ser medíocre, será barato. Naquele momento, o Alemão ficou na velha estrada da minha infância – e entrou na autobahn esburacada da falta de exigência. Tudo se resumia àquele pedaço de indolência que ficou na minha frente – e, pior, ficará ali, na frente de todos.

 

Brahma Escura, gostinho de torneira (FOTO Pedro Mello e Souza)

 

 


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