Cracco, por Cristiana Beltrão

[20 abr 2011 | Pedro Mello e Souza | 5 comentários ]

TEMPLOS MODERNOS

O Cracco, de Milão, sob a visão, o paladar e as fotos de Cristiana Beltrão, proprietária dos restaurantes Bazzar.

 

Em aproximadamente 850 anos antes de Cristo, Assurnasirpal II, rei Persa, inaugurou seu novo palácio com uma festa de dez dias, custeada através de tributos, para nada menos que 70 mil convidados. O ponto alto era um suntuoso banquete, no qual iguarias raras eram trazidas de regiões remotas para enfatizar o poder do governante.

 

Nos tempos modernos os templos são outros, e os banquetes são fins em si mesmos.

 

Dia desses, estive no templo do “rei” Carlo Cracco, em Milão, chef que coleciona estrelas por onde quer que passe. Do Gualtiero Marchesi aos dois “Alains”, o Ducasse e o Sanderens, a constelação de Cracco já soma 11 estrelas Michelin.

 

Nos rituais gastronômicos de hoje, quem quiser escrever seu nome na história dos domínios estelares, paga vultosas quantias ao dono do palácio. Em troca, o visitante espera muito mais do que comida: quer um belo cenário, uma procissão de pratos, talheres, copos, encantamento e muito prazer.

 

Ao entrar no Cracco a Cena Trimalchionis, de Satyricon (séc I) me veio imediatamente à cabeça. Não só pela teatralidade da entrada como por um detalhe importante: ao chegarem à casa de Trimalquio, os hóspedes eram recebidos por um porteiro e levados por uma galeria cercada de colunas para uma imediata visita aos banhos.

 

O prelúdio tinha por objetivo mostrar que se tratava de momento de ócio, não de negócio. Estranhamente, no Cracco, a estória é a mesma. A hostess nos recebe indicando os banheiros, situados no alto de uma escadaria, ao final da qual, não sei bem por que, esperava aplausos.

 

Arquitetonicamente o restaurante lembra a sede de um banco, com muito mármore e ar sóbrio de um minimalismo “executivo”. Não há música e era uma quarta-feira no almoço. Em respeito ao espírito majestático, limitei-me [milagrosamente] a sussurrar.

 

A jovem e simpática sommelière nos oferece a carta de vinhos que parecia o plano-diretor de uma cidade-estado. Contive a respiração a cada virada de página. Para regar e animar a escolha, uma taça de Franciacorta nos foi presenteada na abertura dos trabalhos.

 

Em seguida, um garçom eficiente apresenta as opções do cardápio. Como não perco tempo nomeando a minha gula e nunca desperdiço uma refeição estrelada, escolhi prontamente o menu com o maior número de pratos possível.

 

A apresentação dos pratos é ousada, fato nada comum para os tradicionais restaurantes italianos, a começar pela “salada” do couvert : 3 tipos de batata, cenoura, abobrinha e outros legumes secos numa adorável caixinha de acetato. O objetivo é que esta salada seca lhe acompanhe ao longo de toda a refeição.

 

 

Aos colecionadores de estrelas faço um aviso: a cozinha de Cracco é sutil. Nada equiparável aos pares franceses com a mesma patente. Não espere pratos parrudos, molhos densos e manteiga onipresente. Mergulhei com alegria nos sabores brandos, mas complexos, que se “desdobram” na boca numa profusão de descobertas.

 

Na primeira etapa, uma série de entradas: maionese de batata com legumes entre discos de caramelo (esquerda); melancia com amêndoas em lascas, leite de amêndoas e mexilhões (centro) e a perfeita espuma de mascarpone, bacon e pão com toque defumado (direita).

 

 

Em um episódio dedicado às delicadezas entre os frutos do mar, provamos ostras cozidas com creme de figo e manteiga maravilhosamente aveludada, micro alcaparras e sálvia crocante – o melhor prato da refeição (foto da esquerda). Em seguida, legumes, peixes e frutos do mar, com mexilhões, algas e tomates secos sob manto de folha de arroz (centro) e uma salada de salsa no vapor (Cracco ama salsa) com ouriço, orquídea, micro amêndoas amanteigadas e gergelim. Poesia no prato (foto da direita).

 

 

Em mais um ato, o terceiro, vieiras sob salada e molho de bacalhau seco, também com folha de papel de arroz (esquerda). A seguir, escargots cozidos sobre um creme brûlée feito com inteiramente com azeite extra-virgem. Original e espetacular (centro). E um peixe cru (algo entre o pargo e o sargo) sobre nougat crocante de sal. O nougat não é comestível; é feito apenas para aromatizar o peixe. A sutileza de aromas me emocionou (direita).

 

 

Na quarta seqüência, tivemos um creme de arroz cozido no leite com ovo de codorna à baixa temperatura, marinado com açafrão. Que não surpreendeu (esquerda). Depois, o spaghetti com salsa. Aqui, a tradição italiana finalmente se fez presente (centro). E em mais um momento de pura criação, bolinhas de papel de arroz de inspiração oriental e alma italiana: com recheios de pimentão, abobrinha, espinafre e berinjela. Toques de cominho e sementes que me pareceram de kiwi (esquerda).

 

 

Nelson Rodrigues costumava citar um fictício quinto ato de Rigoletto. No prelúdio desse nosso quinto ato, um naco generoso de fassone, raça nobre de gado autóctone do Sul do Piemonte, com folhas de funcho e batatas (esquerda), um divino pombo com flor de sal e legumes ao molho de frutas vermelhas e coentro (centro) e, pra quem é louco por tutano como eu, esse prato é absolutamente indispensável: pão-de-ló feito com caldo de carne sob lâmina de tutano. O prato já parcialmente devorado atesta meu estado de espírito naquele momento (foto da direita).

 

 

O capítulo das sobremesas chegou em cinco episódios: um creme de uvas com pignoles e azeite. Delicado, refrescante e impecável (no alto à esquerda). Um cannoli açucarado com figos e creme de queijo e especiarias (acima, ao centro). As bolinhas de avelã com chocolate e “sorbeto” de uvas e amaranto (abaixo, à esquerda). A sopa de figos com açafrão-da-terra (abaixo, ao centro). E, finalmente, A salada de frutas secas minimalista (foto vertical à direita).

 

 

Café… Amém.

 

Entendi, ao final do almoço, a ausência de música ambiente. A sensação de plenitude que nos toma permite que cada um preencha o silêncio com seus tons e compassos favoritos. O banquete durou três horas; a memória da refeição durará a vida inteira. O tempo gastronômico é, sem dúvida, relativo.

 

 


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Depoimentos

  1. Ana Paula Baumgarten Krebs disse:

    Adorei!

  2. Ana Carolina Goulart de Andrade disse:

    Que delicia de texto !

  3. Patricia disse:

    Depois desse texto maravilhoso sobra muito pouco p comentar.
    Fica a certeza q em Milão , Cracco é parada obrigatória e com muito prazer.

  4. Taisa Kunkel disse:

    Porque nao existe o mesmo no Rio De Janeiro ?