O panteão das trattorias

[12 jun 2012 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

A pajata do post acima é mais do que uma especialidade da região do Lazio, onde prevalecem as iguarias à base de abbachio, o cordeiro de leite. É um caso do monumento da arquitetura culinária de Roma, um requinte que mora em seu endereço único: a simplicidade. E é também um dos destaques do cardápio de uma concorrida trattoria do centro de Roma, a Armando al Pantheon, que fica a alguns passos do famoso templo aos deuses do antigo Império Romano, que batiza a área e desse restaurante, que celebrou, no ano passado a conquista de uma das credenciais que a história exige: meio século de existência.

 

Antigo Império. Pois é. É isso o que se imagina de uma Roma de tradições afloradas em pedras seculares, em que se cumpre roteiros milenares, todos cravados no mármore dos guias modernos, que admitem pouco – ou nenhuma – variação sobre o que se pode ver além de coliseus e piazzas, fontanas e vaticanos. A mesa, assim como a vista, também não conta com guias que mostram o que há de realmente monumental na cozinha de Roma.

 

O Pantheon de Armando: duplo papel na história

 

Os pratos chegam no centro da mesa, servida pelo próprio Armando, em porções generosas, que podem ser pedidos à la carte, em porções mais ortodoxas, individuais. Ali, o paladar monumental da cidade começa a ir além das ruínas de pizzas rápidas e fettuccines de carnaval. Com o riso nero de gambero e agrumi (arroz negro com camarões e cítricos), entramos nesse delicado panteão gastronômico de Roma: as laranjas, que dão um travo de acidez e doçura ao prato. Outro elemento imortal, a tinta de lula, que tinge o prato confere uma untuosidade que é quebrada pelo veludo do camarão e pela ação gentil das laranjas avermelhadas, conhecidas como taroccos.

 

Armando al Pantheon: Riso e gambero (Foto: PMS)

 

O passeio pelos monumentos prosseguiu com uma curiosa forma de sanduíche, a linguaccia romana, preparado com um pão redondinho, o tozzetto, típico do Lazio. No recheio, favas e guanciale, uma fatia grelhada da papada do porco que, apesar da semelhança física, não tem nenhuma relação com essas tristes ripas gordurentas, às quais convencionamos denominar como bacon.

 

Linguaccia: aula no sanduíche (Foto: PMS)

 

E a seguir veio a própria pajata, do post acima, que foi disputada com contido interesse na prmeira garfada – e com explícita avidez, a partir da segunda. O Trebbiano d’Abruzzo que abrimos, mineral no início e de levedos fortes na evolução, sustentaram não somente a complexidade do primeiro prato, mas dos que vieram a seguir. Antes, nos deliciamos com a segunda metade de uma garrafa magnum de um Gravner Ribolla 2001, uma pinçada de mestre do nosso arqueólogo-chefe, Alexandre Lalas, na rápida passagem que fizemos na Enoteca Il Goccetto, que vai merecer post próprio, mais adiante.

 

Pajata: surpresa da arqueologia culinária de Roma (Foto: PMS)

 

Mas o caminho pela nossa via appia gastrô prosseguiu na grandeza da humildade. E não é deboche, pois o que chegou foi um prato aparentemente básico, de massinha tubbetti com mais guanciale, dessa vez em cubinhos crocantes, e polvilhada com queijo pecorino. Nosso  tribuno, Nicola Massa, explica o caminho dessa simplicidade: é um prato que marca o movimento da transumância, em que pastores, bagagens e rebanhos migram para o alto da montanha, durante o verão.

 

Tubbetti, guanciale, pecorino: herança pastoril (Foto: PMS)

 

Não sei se o melhor deixam para o fim – foi realmente difícil eleger o melhor da série. Mas chegou o chamado abbacchio brodettato, um ensopado riquíssimo de cordeiro, que é estufado em um caldo consistente (diferente dos brodos, que costumam ser claros), preparado lentamente com ossos, carnes e condimentos como cravos e canelas, bases como tomates, cebolas, aipos e cenouras, cheiros como a manjerona e a hortelã local (mentuccia romana). Garfo e faca estão ali, mas recomendam-se outros dois talheres: mãos para as carnes. E colher para o molho e o feijão (fagioli di Viterbo), que também podem ser raspadom com um dos pães que vieram à mesa: o bruschello.

 

Abbacchio brodettato: paladar fino na aparência rústica (Foto: PMS)

 

Os baci di dama, finíssimos chocolates oferecidos na saída, não cabiam mais na memória. A rigor, pouco caberiam na história vivida naquela mesa, em que cada prato conta a trajetória de um rito, de um apuro, de um carinho, todos tão próprios de uma Roma risonha à mesa.

 

Roma risonha...

 

Há uma outra visão sobre a degustação, essa muito mais sensível do que a minha, no texto de Cristiana Beltrão.

 

 

 

Armando al Pantheon

Salita dei Creschenzi, 31

Roma

armandoalpantheon.it

Tel.: 06.68803034


 


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