Oriente-se

[17 out 2012 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Fusão sem muita confusão

 

Molho shoyu em prato indonésio? Receita cantonesa em cardápio tailandês? Bebida coreana em ambiente chinês? Não estranhe. Os encontros das diversas correntes culinárias do Sudeste Asiático acontece há milênios em toda a região que corre do leste da Índia ao norte do Japão, ao sabor de dominações, intercâmbios e migrações. Mas se a mistura é possível, a confusão também o é. Por isso, vale a pena organizar um diretório de ingredientes comuns em todos os restaurantes de influência asiática, suas origens, variações e pontos em comum, que tranformaram o Sudeste Asiático na mais badalada nação gastronômica do momento.

 

Enguia grelhada, purê de inhame e molho teriyaki, do Kotobuki (Foto: Landau)

 

OS MOLHOS


Curry (Índia).

De kari (कारी), palavra tamil para molho, que gerou o português caril, que os portugueses usam – mas os brasileiros ignoram. Elemento-símbolo da culinária pan-indiana, que define uma série incontável e genérica de condimentos em pó – e não um único, amarelo, como é a vendido no Ocidente. Vem sendo preparado diariamente há mais de 7 mil anos em toda a Índia, onde as fórmulas envolvem especiarias como anis estrelado, badiana, cravo, canela, coentro, cardamomo, cúrcuma, gergelim, funcho, noz moscada, sementes de papoula, tamarindo e pimentas diversas, em misturas características de cada região, cada vilarejo e cada família da Índia. O que se conhece no comércio, que tornou-se símbolo universal da cozinha hindu, é uma versão padronizada pelos ingleses, com base em cúrcuma e de especiarias fortes. Além do sabor marcante que imprime a carnes e legumes, o curry foi considerado por cientistas na universidade de Leicester, na Inglaterra, como um preventivo de tumores, a partir de estudos que comprovaram a considerável diminuição na incidência de câncer de cólon nas populações que o mantêm na rotina de sua cozinha.

 

Ganjang (Coréias)

Interpretação de 간장, versão coreana dos molhos de soja, de mesa ou de cozinha, similares aos que o Ocidente conhece como o ‘shoyu’ japonês. Como tal, tem e textura fina, cor escura e sabor salgado e proeminente. Os registros mais antigos da produção do condimento vem do século 8 aC e envolve o aquecimento do mosto, a fermentação e a extração do líquido.

 

Nam Thai, no Leblon: lombo de robalo grelhado com curry de abacaxi

Hao yu (Cantão, China).

Ou ‘hao you’ em mandarim, ambos interpretações de 蚝油, molho de extrato de ostras fermentadas. É usado para dar um toque salgado a refogados de carnes, cogumelos e legumes. De origem cantonesa, expandiu-se pela Indochina através dos antigos domínios chineses ou das emigrações cantonesas.

 

Jeotgal (Coréias).

Denominação genérica dos molhos de camarões, ostras e peixes ou suas tripas, que são salgados e deixados a fermentar em imensas jarras de cerâmica. Definido pela expressão 젓갈, pode ser acompanhamento de mesa ou condimento de cozinha, temperando conservas como o kimchi ou condimentando massas e carnes fortes.

 

Jiang you (China).

De 醬油, que significa, literalmente, “geléia oleosa”. Denominação genérica que o molho de soja ganha das cozinhas do leste da China, principalmente, em Taiwan. Na pronúncia adequada, a semelhança com a expressão “shoyu”, o mítico molho de soja japonês, não é mera coincidência.

Sabores modernos para o antigo molho ganjang, aqui os da Sempio, contemplados com o prêmio de design RedDot, de 2013

Masala (Índia).

Denominação genérica que os indianos conferem a misturas pastosas ou líquidas de molhos de legumes e temperos. Interpretação de मसाला, a partir do árabe “masaleh” (مصالح), ingredientes. A rigor, até um curry é um masala.

 

Nam pla (Tailândia).

Originalmente, น้ำปลา, caldo aromático de anchovas salgadas e fermentadas em técnica que demanda tempo e apuro que são detectados pelos experimentados e qualificados pelos expertos. Escuro mas fino como os demais temperos asiáticos à base de frutos do mar, é usado para salgar os pratos na panela ou na mesa. É o molho tailandês por excelência.

 

Misso (Japão)

De 味噌, pasta de soja salgada e fermentada com um agente de arroz previamente curtido, o koji. Integra a culinária japonesa desde o século XV e ganhou importância durante a proibição da carne imposta pelos budistas, pois supria a deficiência proteica causada pelo inacreditável ato dos clérigos. Dependendo do grau de maturação ou da forma de seu preparo, que, além da soja, pode envolver o arroz ou a cevada, torna-se a matriz de petiscos, massas e sopas como o emblemático ‘misoshiru’ (味噌汁). Já disseminado em todo o mundo, passou a ser, junto com o saquê, a mais importante contribuição da cozinha nipônica à culinária de todo o mundo.

 

Nuoc mam (Vietnã).

Ou “nước mắm”, na grafia original – pronuncia-se “nurerk mam”. Caldo aromático de frutos do mar salgados e fermentados em estilo que se assemelha ao extinto garum dos romanos. Típico da Indochina influenciada pelos chineses (Vietnã, Laos), é um dos expedientes baratos para salgar e temperar frituras, molhos e pratos compostos, como cozidos, sopas, caldos e ensopados.

 

Shoyu (Japão)

Do japonês arcaico uoshoyu, antigo molho salgado obtido da fermantação de peixes, algo semelhante do que foi o intragável garum, sucesso nas boas casas da Roma Antiga. O shoyu que o mundo inteiro conhece veio da China, no rastro das doutrinas budistas, que pregavam hábitos vegetarianos e trouxeram, assim como o tofu e o miso, o produto já iniciado. O acabamento e o formato final que os chineses não conseguiram dar tranformaram o shoyu em um ingrediente genuinamente japonês. Em resumo, o molho, apto tanto para a mesa quanto para a cozinha é extraído da fermentação da soja e trigo e diluído em água até que atinja uma das dezenas de concentrações e tonalidades que dominam os mercados asiáticos. Pouco se conhecem fora da Ásia as variações mais leves ou as mais consistentes ou ainda as menos salgadas, que recebem aditivos como melaços e caramelos. E, pelo visto pouco se conhece também do hábito de usá-lo, já que, enquanto lá é cerimoniosamente pincelado ou pingado nos alimentos, aqui transforma-se em um banho de salmoura para os pobres e desprotegidos suhis. Há quem escreva shoyo, sem saber que a expressão equivalente – 小用 – significa urina, pela simples troca de uma letrinha.

 

Shichimi togarashi (Japão)

E não sashimi togarashi, como preferem os ignaros. A expressão vem de De 七味唐辛子, que significa, literalmente, pimenta dos sete sabores. Condimento com base de pimenta vermelha moída como uma páprica rústica e, no mínimo, seis outros ingredientes variáveis como sementes de mostarda, papoula ou gergelim (crus ou torrados), algas e, eventualmente, raspas de casca de cítricos. Tempera ensopados, massas como o ‘udon’, nabemonos e yakitoris, muitas vezes em quantidades exageradas, em função da fama de suas propriedades narcóticas – ou em desafio a seus princípios alergênicos.

 

Sichimi togarashi, no Azumi, no Leblon (FOTO: Pedro Mello e Souza)

Sriracha (Tailândia)

Molho picante de tomate com pimenta, que muitos comparam com um ketchup picante, já que, como tal, vai à mesa em pobres tubos de plástico. Frasco feio, mas condimento poderoso.

 

 

 

OS PETISCOS

 

Dim sum (Cantão, China).

Especialidade símbolo da cozinha cantonesa não é um prato específico, mas um serviço de petiscos diversos, como bolinhos, tortinhas e, principalmente, trouxinhas de folhas de massas como o won ton recheadas com carnes diversas, que são picadas, marinadas, refogadas e combinadas com cogumelos e outros ingredientes. A fórmula lúdica, que faz chegar à mesa em armações de palha, nas quais cozinha ao vapor, inspira hoje chefes contemporâneos de todo o mundo. Em Hong Kong, são comuns mais de 200 tipos diferentes, com ou sem massa, cozidos ou fritos, que são servidos com chá, no desjejum matinal ou no lanche da tarde.

 

Kimchi (Coréias).

De “shimshae”, salmoura de vegetais, que gerou “dimshae” e “kimshae”. Pronuncia-se “quimuchi”, interpretação do ideograma 김치. É uma conserva forte e picante de legumes fermentados em salmoura com temperos e pó de pimenta, que tornou-se o principal e mais característico acompanhamento da culinária coreana em todas as refeições. O repolho, seu principal ingrediente, fermenta junto com cebolas, acelgas, pimentas, alhos, rabanetes e cebolinhas. A pimenta vermelha em pó lhe dá a força e o tom avermelhado característicos. Não há rigor na receita nem uma fórmula precisa, já que cada família coreana pode ter a sua sugestão para o universo dos kimchis, que conservam em potes de vidro, embora qualquer prateleira de supermercado apresente um leque dos mais diferentes tipos. Preparados similares ao ‘kimchi’ são registrados desde o século VII, quando integravam o repertório das conservas de inverno e os repolhos chineses teriam chegado com o período Silla, de unificação. Mil anos depois, ganharam a força e o vermelho da pimenta, introduzida pelos portugueses. Há quem atribua propriedades antibióticas ao ‘kimchi’, pela ação do ácido lático, sub-produto da fermentação, que inibe o desenvolvimento das bactérias além do que elas são úteis ao processo. Mas a ciência já comprovou a alta concentração de vitaminas C e E, que juntas, ainda compõem um poderoso antioxidante. O alto nível de proteínas e as baixas calorias que fornecem o justificam como um dos acompanhamentos apropriados para qualquer dieta e explicam porque cada coreano consome 18 quilos de kimchi anualmente. Toda a história, artefatos, bibliografia, lojas e até degustações podem ser encontrados do museu do ‘kimchi’, em Seul.

 

Poh piah (China).

De 薄餅, que significa, literalmente, “bolinho frágil”, referência à finura e à fineza das folhas de massa de arroz, que são enroladas em torno de recheio de carnes, principalmente a de porco, legumes, cogumelos e queijos de soja. Pode ser frita ou cozida no vapor e ganha uma série de variações regionais por todo o Sudeste Asiático: nem ou bahn cuon, no Vietna; lompia, na Indonésia; chun guen, em Hong Kong.

 

Satê (Indonésia).

Grafia original que ingleses e americanos transcreveram (e muitos macaquearam) como satay, para que chegassem, entre eles, à pronúncia correta. Refere-se aos espetos de carnes e miúdos diversos temperadas com molho sambal, grelhadas e servidas com molho picante de amendoim, que se tornaram símbolos da culinária indonésia no mundo.

 

Teriyaki (Japão).

Não um molho, mas uma coleção de petiscos assados em espetos – crustáceos, frangos, cogumelos e, originalmente, insetos, que maceram em uma mistura consistente e adocicada de molho de soja. O sucesso desse molho roubou para si a denominação, que batiza, atualmente, qualquer prato grelhado que venha a integrar.

 

Won ton (Cantão, China)

Ou ‘wantan’ ou ‘yanton’, todos interpretações que os cantoneses dão ao 餛飩 (em mandarim, ‘huntun’), denominação das trouxas de massas finíssimas de pastéis (farinha com ovos), que envolvem delicadamente recheios de frutos do mar, carnes ou legumes, antes de serem cozidos e servidos como petiscos (‘dim sum’) ou caldos claros de legumes. Duas curiosidades cercam a denominação da iguaria: na primeira, uma das interpretações para os ideogramas seria o etéreo “degustar as núvens”, associado ao formato irregular; na segunda, os mesmos ideogramas para ‘wonton’ são usados pelos japoneses para denominar uma de suas massas mais populares, o ‘udon’.

 

 


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