O porco alentejano

[16 dez 2011 | Pedro Mello e Souza | Sem comentários ]

Salpicão de porco preto alentejano, do Fialho, em Évora (Foto: Pedro Mello e Souza)

Os alentejanos não fazem cerimônia ao denunciar: “o presunto pata negra é feito com o nosso porco preto”. Afirmam com a tranquilidade, a segurança e a fleugma de que essa determinada certeza pouco contribuiria para a o reconhecimento da qualidade do seu rebanho suíno.

 

Mas enganam-se. Oficialmente, o reconhecimento já veio há 8 anos, quando a Comunidade Européia registrou a grife Porco Alentejano e chancelou a marca com um selo de Denominação de Origem Protegida.

 

Extraoficialmente, porém, esse reconhecimento remonta aos romanos, que não só os consumiam, mas também os exportavam. Curiosamente, o domínio árabe, sob as proibições do Alcorão, não diminuiu a produção e o degustar do porco, nem em Portugal nem em Espanha.

 

Pelo contrário, até, pois o censos realizados nas cidades mais importantes, inclusive Córdoba, a capital da ocupação, mostrou um crescimento do número de cabeças – foi tido como alimento são, durante os quase mil anos de Pax Arabica.

 

Com a retomada pelos monarcas católicos, o porco foi usado como mote de humilhação dos mouros expulsos, até mesmo nas decorações sacras, com porcos acompanhando imagens de santos em quadros, esculturas e vitrais.

 

Hoje, o porco alentejano – Sus ibericus -, preto no manto e nas patas negras, é nimal de robustez admirável – e agressivo até na hora da foto, especialmente o macho alfa do rebanho, alerta diante da fêmea e seus bacorinhos, mas imponente ao envergar as cicatrizes profundas em seu corpo, que ostenta, após duelos pela liderança da vara, como as dragonas de um general.

 

Porco preto alentejano (Foto: Pedro Mello e Souza)

 

De suas carcaças imensas, recolhem-se as carnes, gorduras, vísceras e barrigadas, que serão distribuídas ou transformadas naquilo que brilha na espécie: os embutidos e as carnes curadas, iguarias com o reconhecimento da União Europeia, como os paios de Beja, o chouriço de Vinhais e as alheiras de Mirandela,

 

Bochechas de porco e arroz de cogumelos, na Herdade do Esporão (Foto: Pedro Mello e Souza)

E, claro, os presuntos de porco preto do Alentejo (DOP): Barrancos, Vinhais, Barroso, Campo Maior e Elvas.

 

São especialidades que, tal como seus similares do outro lado da fronteira, são perfumados ao longo da vida do animal, por sua alimentação à base de bolotas de azinehira (Quercus rotundifolia) e do sobreiro (Quercus suber), matriz da cortiça, outro emblema lusitano.

 

A carne fresca é servida em especialidades como as fêveras (ou febras) e as bifanas. Ou em assados de lombo, como o que a Herdade Grande manda servir a visitas ilustres (ou quase). E ainda em fritos, que se guarnecem com as chamadas migas à alentejana. Os rojões, filés de lombo, ganham a companhia das amêijoas, para o clássico carne de porco à alentejana. As orelhas e os pés saem do forno e ganham o banho da coentrada, enquanto os miúdos, inclusive corações e pulmões, servem às fórmulas de cacholeiras e sarrabulhos.

 

Segundo os rigores da denominação, a carne do porco alentejano nunca pode ser congelada. No máximo, será maturada em ambiente refrigerado (nas condições de temperatura entre 2 e 4 graus e humidade relativa entre 85 a 90%) nunca depois de 48 horas de abatido.

 

Cachaço de porco, no Bocca, em Lisboa (Foto de Pedro Mello e Souza)

Os porcos não eram somente consumidos pelos romanos: eram também exportados. Curiosamente, o domínio árabe, sob as proibições do Alcorão, não diminuiu a produção e o degustar do porco, nem em Portugal nem em Espanha. Com a retomada pelos monarcas católicos, o porco foi usado como mote de humilhação até mesmo nas decorações sacras, com porcos acompanhando santos em esculturas e vitrais.

 

No Censo de 1870, dados espetaculares: o porco é o gado predominante, sem rival, “do mais abonado lavrador ao mais mísero cabaneiro”, revela o relatório original da época. Mais ainda, 95,8% dos portugueses abaixo da linha de pobreza mantém a sua pocilga: “porque os menos afortunados é da rez suina que tiram o unto para o fumeiro, que engroda um tanto e dá tempero à sua magra panela”, descreve o documento, em grafia original.

 

Cacholeiras do Trombalobos, na Herdade do Rocim (Foto de Pedro Mello e Souza)

No relato de José Maria Picão, em seu livro Através dos Campos, de 1904, a ambientação, dois retratos da rotina em torno do cuidado com os preparados após o período conhecido como “Matança dos Porcos”, em fins de outono:

 

“O fumeiro comprehende: grossas mantas de toucinho empilhado em salmouras próprias; as varas de enchidos como paios, chouriços, linguiças, morcellas, cacholeiras e farinheiras, cada qual em separado e todas suspensa por cordas presas ao tecto, formando por este modo a parreira ou latada de carne cheia previamente defumada nos vãos da chaminé. Se a carne já enxugou, a latada, não aparece pois que o enchido passou a armazenar-se em potes de barro ou lata. … E todos estes mantimentos ali figuram, entre balanças, pesos e medidas, não por ostentação de abundância, mas como previdência económica de primeira intuição – alimentar com barateza uma creadagem avultada.”

 

“As matanças dos porcos gordos para o preparo do fumeiro, proporcionam ao pessoal da lavoira melhoria de alimentação. Nas manhãs d’ essa faina, todos que a desempenham, bebem o seu copito de aguardente, a pretexto de aquecerm o estômago e matarem o bicho. Depois de almoço, concluída a chacina, regalam-se á vontade com boas talhadas de chouriço e morcella fria, acompanhadas de azeitonas e vinho. A superioridade dos puxativos estimula-os a encherem e emborcarem os copos com frequência, pondo-se todos meio tachados e alguns a cahir. “

 

Bacorinhos na Herdade dos Grous (Foto: Pedro Mello e Souza)

 


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